sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

DEAD SET - Quando Big Brother bom é Big Brother morto


Quando assisto a TV aberta, a maioria dos programas e notícias me faz pensar que a humanidade regrediu para um estado de bestialidade. As novelas, que mesmo piegas, procuravam abordar temas relacionados a coisas positivas, trazendo alguma lição de moral, hoje, ultrapassaram o tom de cinza de seus personagens, apresentam temas mais escuros, repletas de vilões, que muitas vezes não chegam a ser punidos por seus crimes, confessando ou não, ao final da trama, no máximo um pouco de arrependimento e só; Os tele jornais se tornaram verdadeiros noticiários de terror, utilizando o sofrimento e medo como escada para alcançar a audiência; e mesmo os programas infantis que povoavam as manhãs, sucumbiram as novas tendências sendo substituídos por shows que falam sobre a aparência "perfeita" e a pseudocultura do corpo e felicidade eterna, em resumo, estamos vivendo a era da superficialidade e nada reflete mais isso, do que o entretenimento televisivo que nos acompanha anualmente a quase vinte anos, os reality shows.

Os Realitys são programas que mostram a reação de pessoas comuns quando colocadas em situações extremas, ou pelo menos, deveriam mostrar. No Brasil, o primeiro a surgir foi "No limite", onde um grupo de pessoas era largado em um lugar desabitado, tendo de passar por diversas adversidades para conseguir comida, sendo desafiados durante dias pela natureza e pela quebra de rotina, o programa era baseado no "Suvivor" americano e tinha a superação física como principal chamariz, mas sua vida na TV brasileira durou relativamente pouco e com menos de cinco temporadas o programa foi cancelado. A Tendência atual são os programas de culinária, como "Cozinha sob pressão" e "Master chef", que disputam a cada temporada a atenção dos curiosos para saber quem se sai vitorioso em meio a tortura psicológica e o assédio moral proporcionado pelos Chefs e juízes, em um retrato distorcido do que é o profissionalismo e produtividade. Mas, embora as novas tendências arrematem cada vez mais fãs, ninguém ainda conseguiu superar a longevidade e alcance do reality mais popular de todos os tempos e que nesse ano completa dezessete edições, criando bordões, debates e sub-celebridades como nenhum outro programa jamais fez, trata-se do "Big Brother".


O programa "Big Brother" foi criado pela produtora de TV Holandesa Emdemol, com base na ideia de um dos sócios fundadores, John de Mol, que apresentou o projeto onde quinze pessoas ficavam confinadas em uma casa, sem acesso ao mundo exterior por qualquer forma e vigiadas vinte e quatro horas por dia, durante três meses, na busca de um prêmio, sendo o convívio o maior adversário que os estranhos poderiam ter na busca dessa conquista. O nome do programa veio de como era conhecido o grande ditador do país continente "Oceania" no livro 1984 de George Orwell, que, por meio de equipamentos chamados tele-telas, presentes nas casas de todos habitantes do país, vigiava a todos, os mantendo como cativos livres. O programa foi realizado em diversos países, como no Brasil onde estreou em 2002 e virou febre desde então, já na Inglaterra, país adotado por Orwell e que serve de cenário para trama de seu livro mais famoso, o reality teve seu primeiro episódio transmitido em 2000 e as reações não foram muito diferentes do que em nossas terras tropicais. No entanto, parece que os ingleses perceberam muito antes de nós para onde todo aquele show de falsa realidade estava apontando e da mente brilhante de Charlie Brooker (ele mesmo, o criador de Black Mirror) estreava em outubro de 2008, “Dead Set” uma das críticas mais bacanas que o programa já teve.

Os sobreviventes
“Dead set” é uma mini-série inglesa, transmitida originalmente pelo canal E4 e gira em torno de Kelly, uma assistente de produção da casa do Big Brother que no 64° dia de transmissão do programa e durante a votação de um paredão se vê em meio de um apocalipse Zumbi que devasta a Inglaterra, terminando por chegar até as portas da emissora de TV. Com muita sorte, Kelly consegue se salvar ao se refugiar no único lugar totalmente seguro que sobra, a casa do Big Brother e tendo de mostrar de forma prática aos participantes que sua presença na casa não é mais uma prova e o que ela diz é verdade. Enquanto isso, Riq, o namorado de Kelly se encontra do outro lado da cidade e parte em sua direção sem saber o que encontrará nas ruas, Já o diretor do programa, Patrick, junto com a última eliminada se encontram presos em uma sala cercada por zumbis, resta agora que os sobreviventes se reúnam para buscar entender o que está acontecendo e como eles podem escapar da casa mais vigiada do reino unido.



O plot da série é bem simples e lendo a sinopse “Dead set” pode se passar por mais uma série de zumbis genérica, mas na verdade a produção inglesa de cinco episódios é muito mais que isso, é um retrato de nosso tempo e de nosso rumo como sociedade.
Baseando os personagens dos participantes em participantes reais, a série vai nos apresentando estereótipos que o próprio programa popularizou, como o mulherengo escroto, a gostosa fútil, a vaidosa burra, o pseudo-intelectual, o marrento e por aí vai, todos fazendo menção a participantes reais, mas também representando um pouco da personalidade de quem assiste e se identifica, mas a produção dá um passo além, quando mostra o mundo da produção do programa, que se apresenta tão baixo quanto o show que produzem. Lá temos o Patrick, que é o diretor e produtor, que age com extrema grosseria com todos, é arrogante, relaxado e egoísta; até mesmo Kelly, a protagonista, é apresentada como um personagem com camadas de cinza, buscando destaque no meio onde trabalha e traindo o namorado com um colega da produção e o próprio ambiente onde ambos trabalham é cheio de inveja, descaso e pretensão, mostrando que o programa é o que é porque é  reflexo de uma sociedade vazia.

Essa crítica social é representada não só pelos personagens que aparecem dentro da casa ou pelos membros da produção, mas também pelos zumbis. Em Dead Set, os zumbis tem uma relevância muito maior do que na maioria das produções desse gênero de filmes, pois na série os zumbis somos nós, a sociedade. O zumbi é o cara comum anestesiado frente ao entretenimento mais raso, reduzido a bestialidade sem pensamento que apenas corre em direção a quem faz mais barulho, com a diferença que na série a ideia de consumir conteúdo fica no sentido gastronômico.

Além de todo peso da critica social e de uma grande quantidade de tripas ao longo dos seus cinco episódios, “Dead Set” ainda consegue referenciar o pai dos filmes de Zumbis, George Romero, em momentos como quando um dos participantes, debochando do que Kelly diz ao chegar na casa, brinca com sua namorada dizendo “vou te pegar barbará” , sendo que esse é o nome da mulher que foge para se abrigar em uma casa aparentemente abandonada na versão de 1968 de “A noite dos mortos vivos” do diretor americano. Do mesmo modo, a personalidade de Patrick, o diretor do programa também lembra muito a de Harry, o outro personagem do filme original de Romero que não mede esforços e usa quem precisa para sobreviver.

Mas de todas as coisas bacanas que “Dead Set” tem o que eu acho impressionante é o fato da série ter sido transmitida originalmente no canal E4, um dos canais que transmitia o Big Brother UK, e não só isso, a própria apresentadora original do programa no país, Davina McCall faz uma participação como ela mesma zumbificada, um deboche típico do humor inglês, que junto com a crítica social passada pelo criador, deve ter trazido bastante dinheiro aos cofres da emissora, mas que mesmo assim surpreende bastante.

É por essas e outras que considero “Dead Set” uma série obrigatória. Misturando critica social, humor e terror a produção se antecipou oito anos à TV brasileira, que fez algo superficialmente parecido quando lançou “Supermax” em 2016, sem passar uma mensagem parecida e obter a mesma resposta da critica e público. Dead Set é uma série que nos faz pensar no que estamos nos tornando, quando valorizamos apenas a aparência, quando parecemos não pensar e corremos trás de tragédias ou entretenimento vazio na TV ou em qualquer outro lugar, então não perca tempo e assista “Dead set” seja por ser fã do gênero, seja por ser fã de Charlie Brooker ou simplesmente para se divertir, mas seja rápido, pois a zumbificação já  começou e não há para onde correr.



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